Cemitérios estão entre os programas arquitetônicos com maior carga simbólica. Sugerem rituais, rigor e solenidade, ao mesmo tempo que devem oferecer algum tipo de conforto ou acolhimento, senão para aqueles que se despedem de seus entes queridos, pelo menos para “garantir" um pós-morte digno para aqueles que se foram. O Cemitério de San Cataldo, de Aldo Rossi e Gianni Braghieri, à primeira vista, cumpre com a primeira parte da afirmação anterior. Em parte porque o projeto não foi inteiramente construído, a austeridade e vazios predominam. Mas ao se considerar o projeto proposto, talvez a aridez se mantivesse, e a dureza fosse sentida com mais ênfase. Composto de edifícios de formas puras quase abstratas, sem detalhes ou revestimentos nobres, o projeto do cemitério é um bom exemplo da produção de Aldo Rossi à época de sua concepção, por volta de 1970.
Vencedora do concurso do município de Modena para a ampliação do cemitério existente, projetado por Cesare Costa em 1876, a proposta de Rossi e Braghieri explora a questão do tipo arquitetônico, caro a Rossi desde os anos 1960, e muito presente na discussão teórica daquele período. Para o italiano, os tipos seriam a essência da arquitetura, vagos como a própria definição. De certa maneira, a definição de Giulio Carlo Argan do tipo é a que mais ilustra as formas rossianas: “redução de um complexo de variantes formais à forma básica comum.”[1] Essas formas básicas, tão marcantes em San Cataldo, podem ser vistas em inúmeros projetos de Aldo Rossi, em diferentes configurações e sempre com funções diversas. À época da divulgação do resultado do concurso, as leituras e interpretações dos elementos utilizados por Rossi giravam em torno da teoria tipológica, do desprendimento das formas em relação à função dos edifícios em seus projetos contemporâneos ou precedentes, e ao significado que evocavam.
Parte desse enfoque se dava pelo próprio memorial descritivo do projeto, em que Rossi apresentava algumas “linhagens” de seu projeto. A forma geral do complexo replicava o cemitério vizinho, e, muito influenciado pelo pensamento Iluminista, Rossi tentava retomar a representação da esfera cívica pela arquitetura. A referência a uma arquitetura positivista foi amplamente debatida em relação a sua produção. Seria prudente que ele o fizesse? Depois do desgaste moderno, no fim do século XX, não era um pouco anacrônico retomar a monumentalidade essencialmente utópica do século anterior? Especialmente depois da Segunda Guerra, não seria arriscado esse posicionamento? De fato, o projeto gerou controvérsias. Enquanto alguns autores aproximavam a linguagem arquitetônica do cemitério aos monumentos totalitários, outros tratavam de analisá-la com base nos escritos e carreira de seu autor.
O texto de apresentação do projeto no concurso indica alguns pontos importantes para Rossi: a teoria dos tipos – Rossi insiste que San Cataldo corresponde à imagem de cemitério que “todos” têm –, a tentativa de retomar a dimensão cívica e institucional da morte e da memória, e o posicionamento (que reforça o primeiro ponto) de que a arquitetura se sobrepõe a funções, programas e ocupantes – Rossi se refere ao cemitério como a casa dos mortos, e reforça que não há distinção, em termos de projeto e criação, entre uma arquitetura para os vivos ou para os que já se foram.
O tom distanciado e objetivo do texto explica a interpretação comum à época de sua divulgação. Rafael Moneo, por exemplo, foca no método de concepção de projeto, e como essa construção de ideias se reflete no cemitério. Apesar do aspecto da intenção de permanência através da memória, o sentimento de separação pela morte é referido através de seu desconsolo e inevitabilidade. Além disso, a colocação explícita da esfera institucional como mediadora da perda apequena o indivíduo, ainda que a ideia fosse a inclusão do jazente na dimensão social, de forma comemorativa. A comparação entre os edifícios do conjunto como a casa dos mortos, e do cemitério como cidade também contribui para a leitura pouco confortante do fim da vida. Na visão de Moneo, o tom duro do texto vai de encontro às formas puras do projeto, e demonstra mais a racionalidade por trás da criação que a subjetividade do indivíduo que as desenhou. San Cataldo reflete as ideias profissionais do arquiteto, e não suas questões íntimas ou pessoais.
Já Manfredo Tafuri defende a linguagem rossiana em relação à própria teoria da arquitetura. O autor defende que a arquitetura de Rossi cala-se em relação às demais, e em relação a si própria. Mostra-se silenciosa e hermética, construída a partir de um sistema arbitrário de signos definido por seu criador. Enquanto a década de 1960 via surgir uma infinidade de manifestações arquitetônicas, Rossi passa a almejar locais onde o tempo parece suspenso, à maneira de Mario Sironi, e libera sua arquitetura do vínculo com a realidade. Sua arquitetura fecha-se cada vez mais, e parece nostálgica de uma outra época. Usando um paralelo com a linguagem, Tafuri afirma que o ponto central de comunicação da arquitetura, para Rossi, está perdido, e o mutismo de suas formas só podem demonstrar a finitude do próprio sistema de comunicação. É como se San Cataldo se resignasse a "dizer" qualquer coisa, o que, em termos simbólicos devido ao programa, representaria também o silêncio do luto.
O ponto em comum entre os dois autores é a interpretação austera e rígida de Aldo Rossi materializada em San Cataldo. Desse ponto de vista, o arquiteto é sua obra: arquitetura rigorosa, acompanhada de embasamento teórico igualmente severo, e idealista no sentido da impossibilidade de atingir seu objetivo. Em Rossi, a teoria tipológica, o conhecimento da História arquitetônica, e a vontade de retomada da reverência da arquitetura na esfera social. Em San Cataldo, as formas básicas, a referência aos exemplos clássicos de cemitério, e a imagem da separação inevitável e desoladora da morte.
É claro que essas são visões parciais do arquiteto e seu projeto. São interpretações que revelam alguns aspectos de Rossi, mas que revelam também interesses e questões daqueles que se propõem analisá-lo. Eugene J. Johnson, por outro lado, faz uma análise morfológica de San Cataldo e separa cada um de seus elementos para fazer uma possível genealogia de formas que compõem o cemitério. O enfoque não é sobre o tipo ou a crise da disciplina arquitetônica dos anos 1960, mas as evidências históricas que indicam por que Rossi optou por determinadas posições de elementos, suas formas e até as cores dos acabamentos. Naturalmente, parte das sugestões de Johnson tocam em pontos já referidos pelos demais autores. Ao analisar a torre cônica de San Cataldo, que seria a vala comum, as referências citadas não deixam de passar por Etienne Louis Boullé, exemplar iluminista recorrente no vocabulário de Rossi; ou Giorgio de Chirico, associado com frequência às formas mudas de seu conterrâneo.
Uma análise como a de Johnson é proveitosa não só pelo exercício de análise formal e construção de repertório, mas por apresentar uma espécie de tradução do vocabulário de Aldo Rossi, e evidenciar o óbvio: não existe tabula rasa em processos criativos, especialmente no caso de Rossi. No decorrer de sua carreira, o próprio Rossi escreveu extensivamente, e, possivelmente, a cada texto, talvez suas visões retrospectivas sobre San Cataldo mudassem. O arquiteto que projetou o cemitério era um, aquele que escreveu sua autobiografia – publicada dez anos após o concurso do projeto – era outro. Parece pouco provável que a leitura de sua obra não mudasse, já que era debatida amplamente, até o ponto em que o próprio arquiteto cansasse de falar sobre ela.
Para aqueles que entram em contato com San Cataldo, alimentados por seus próprios interesses e repertórios, o cemitério não deixa de transmitir significados diversos. Luigi Ghirri, através da fotografia, parece reforçar a ideia do tipo arquitetônico quando diz que ao mediar o olhar, a fotografia reforça o modelo do que está representado. A ideia ou imagem do objeto fotografado acaba por se fixar em determinada categoria mental do observador, que pode vir a reconhecê-las em contextos diversos, por vezes entre o familiar e desconhecido. Essas são características que Ghirri atribui à obra de Aldo Rossi.
Outra interpretação possível de ser feita a partir do cemitério San Cataldo em relação a Aldo Rossi é a sobreposição do sujeito com o arquiteto. Para Diogo Seixas Lopes, apoiado em todos os autores já citados, Aldo Rossi pode ser posicionado como uma figura melancólica no campo da arquitetura. Ao combinar acontecimentos da vida pessoal de Rossi com o período de concepção do projeto, o contexto geral da disciplina à época, o posicionamento teórico do italiano, seus escritos, e as formas e programa de San Cataldo, Seixas Lopes faz uma leitura simbolicamente rica que não nega nenhuma das anteriores, mas sublinha um aspecto a mais. San Cataldo seria a expressão de desconsolo com a morte de um ponto de vista pessoal também: Rossi estava hospitalizado quando da concepção do projeto. A fragilidade do corpo, a crise teórica, a sensação de pequenez do indivíduo perante questões tão abrangentes, complexas ou inevitáveis, pela escrita de Seixas Lopes, trazem Rossi para a escala da pessoa, e o separam do cânone.
Não é possível dizer se o próprio Rossi gostaria dessa abordagem. O que é certo é que San Cataldo segue permitindo interpretações diversas, adensando o rol de combinações simbólicas e possibilidades de significação ao longo do tempo. Enquanto mobilizar significados pertinentes, Aldo Rossi, através de seu cemitério, se manterá como referência, monumento. A permanência é um quesito-chave em sua teoria. Nesse aspecto, San Cataldo tem cumprido a função, o que certamente agradaria seu criador. Em termos mais figurativos, as diferentes leituras de um mesmo Aldo Rossi demonstram sua complexidade, e aquela de seus observadores, o que só pode beneficiar as partes envolvidas.
Nota
[1] ARGAN, Giulio Carlo. Sobre a tipologia em arquitetura. In: NESBITT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: Antologia teórica 1965-1995. Tradução: Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 2 ed, p. 270;